segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Lembranças

     Tenho lembranças dos momentos da minha infância onde vivi numa cidadezinha do interior. Éramos cinco e apenas eu de menina. Os filhos de minha mãe eram três, os mais velhos e um abaixo de mim, menino miúdo das canelas secas, cabelos ruivos e arrepiados. Seu rosto era todo cheio de pintinhas marrons. Quatro anos mais novo do que eu, na época tinha três ou quatro anos eu usava-o como mascote, carregava-o nas costas para cima e para baixo, onde quer que fosse, desde que para fazer alguma traquinagem. Lembro-me que havia na cidade um lugar distante de nossa casa, o velho casarão, aquele citado no outro texto, o qual eu sentia medo. Voltando ao assunto das traquinagens, saíamos escondidos para ir a um lugar que para chegarmos lá tínhamos que atravessar a pequena cidade, porém, longe dos olhos da mamãe. Era uma ribanceira profunda onde havia ali, uma ponte que atravessava de um lado para outro, extremamente estreita, acredito que no máximo trinta centímetros de largura e mais ou menos dez metros de comprimento, onde montava com as pernas penduradas de um lado e do outro deixando minha pequena mascote ali na beira do precipício, que hoje vejo que não era tão profundo, mas para o tamanho de uma criança de sete anos parecia ser uma imensidão. Ficava então o pequeno ruivinho sentado ali, enquanto eu desafiava o perigo. Chegando ao outro lado gritava-lhe. Cheguei!  Agora vou voltar. A velha ponte tremia com os movimentos que fazia, chegando ao ponto de curvar-se de um lado para outro. Podia ouvir os gemidos do cimento enfraquecido. Porém estando do outro lado tremendo de medo e de emoção, pela conquista, olhava e via meu pequeno irmão tão desprotegido e sentia-me na obrigação de voltar para que algo pior não viesse a acontecer. Ficava imaginando, e se ele caísse, e fosse engolido por aquele buraco grande e nunca mais voltasse. Sentava com as pernas balançando de um lado e do outro e novamente desafiava o perigo até chegar ao ponto de início. O pequeno arrepiado ruivo montava em minhas costas e íamos embora galopando. Era o preço a pagar pela companhia, galopava com ele até chegarmos a casa. Quando estava já esbaforida e cansada jogava-o para trás e caía mortalmente sem fôlego. Como é da minha natureza não contar segredos, até o dia de hoje minha querida mãe não sabe disso e acredito que ele não se lembra. Havia em nossa casa uma antiga máquina de costura da mamãe, onde eu fazia as roupinhas de boneca, era inteligente, olhava mamãe fazendo e aprendia. Catava no chão os pequenos retalhos, aqueles que não seriam usados para nada e cortava igual às peças originais e costurava usando o que havia aprendido observando o que mamãe fazia
    Num determinado dia peguei a enorme tesoura para cortar os meus minúsculos moldes e terminei com a ponta do dedo sangrando,com  um pequeno corte  abaixo da unha chorei um lamento descompassado. Aquilo doía, mas o que me fazia chorar era o medo de perder todo o meu sangue, parecia jorrar como uma fonte inesgotável.  E agora? Ia morrer de tanto sangrar, já havia saído do meu dedo quase um litro de sangue, já estava esvaziando o meu corpo. Mamãe pegou um pedacinho daqueles retalhos, fez uma pequena tirinha colorida e amarrou no meu dedinho, fazendo um pequeno laço. O carinho e a atenção recebida foram como um bálsamo para o meu pequeno coração aflito.
    Em menos de um minuto estancou-se a imensa quantidade de sangue que não foi suficiente nem mesmo para molhar o lacinho feito pela mamãe. Era uma tirinha de um centímetro de largura e fiquei com ela no dedo o resto do dia, segurando com a outra mão como se estivesse carregando um bebe. Ninguém podia tocar em meu dodói, estava sensível e dolorido e podia correr o risco de alguém tocar e começar jorrar uma nova quantidade de sangue e eu já havíamos perdido demais. Não podia  facilitar pois se perdesse mais seria uma tragédia, morreria vazia , sem sangue e ficaria muito branca depois de morta. Combinei então com meu pequeno ruivo, que já que não podia costurar mais, minhas bonecas estavam sem roupinhas, eu o ensinava a fazer isso, El ia costurar as benditas roupas. Afinal ele era meu melhor amigo, então tinha que fazer isso por mim, pois eu estava impossibilitada. Sentou-se na cadeira e começou a pedalar em menos de meio minuto ouvi os berros. Que coisa horripilante  testemunhei. Gritos que pareciam penetrar em meu cérebro. O desespero novamente apoderando-se do meu ser.
     Olhava e ficava estática, não sabia o que fazer para ajudar meu ajudante que na primeira pedalada prendeu o dedo na agulha que atravessou inteira bem em cima da unha e ali não podia mexer nem pra cima nem pra baixo.  Lá vem novamente a nossa heroína com o coração nas mãos. Mamãe tinha seu todo ocupado, teve uma vida difícil, porém emocionante, pois admito que não lhe dava tempo para descanso. Sua preocupação era intrigantemente concentrada em mim. Toda vez que planejava uma aventura, tomava sempre o cuidado de mamãe não saber antes que fosse realizada para não correr o risco de não conseguir. Os meninos eram instruídos a me vigiar em tempo integral, sendo que eles muitas vezes divertiam-se com minhas aventuras.

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